terça-feira, 8 de março de 2016

Costela trincada

  Hoje é um suposto dia de celebração, mas não. A Mulher do Fim do Mundo ainda habita o nosso cotidiano, aquele campo aberto com seus cantos escuros, e prantos, e medo, e dor. Elza Soares disse e viveu muito mais do que eu possa ousar escrever, mas ainda sim escrevo e parabenizo essa cantora, não por ser mulher, mas pela postura, humana.

  Não irei parabenizar as duas jovens mortas recentemente no Equador. Não darei rosas à presidente de meu país, massacrada em estado de graça por toda a nossa população masculina, e mesmo feminina. Não direi parabéns àquelas vítimas diárias do regime islâmico totalitarista, nem mesmo às meninas que tem as suas genitálias dilaceradas em procedimentos seculares em países africanos.

  Hoje eu não quero comprar flores, nem perfumes e roupas. Hoje não quero dizer meus parabéns às meninas usadas como escambo nas estradas tristes e concretas do Brasil, ou mesmo àquelas pequeninas que servem de boneca sexual para milionários europeus e asiáticos. Não quero, e nem irei, cumprimentar Malala Yousafzai,   

  Não importa de onde vem essa data, se de um incêndio maligno, de comícios e passeatas russas, americanas, enfim. Não farei discurso, não alardearei sobre as mulheres.

  Não pedirei um minuto de atenção para os homens indianos e seus estupros diários, costumeiros e lícitos. Não falarei aos cearenses sobre o seu índice maior de feminicídio. Não lembrarei aos homens de bem sobre a sua sexualização do amamentar. Não discutirei com as moças, senhoras e idosas sobre a suposta obrigação de amar o filho, amar o matrimônio, amar a vida de mãe, de esposa.

  No decorrer de hoje eu não irei parabenizar ninguém, não direi nem mesmo obrigado. Não falarei àquelas mulheres encarceradas socialmente, por terem na sua condição de mãe cometido um crime inafiançável. Não pedirei aos órgãos religiosos que abdiquem de seus textos bafientos e eivados de violência à mulher, a violência não física, mas subserviente, silenciosa e maligna.

  Não direi obrigado às mulheres que acordam cedo e arrumam a casa, fazem o café, arrumam os filhos, levam-nos à escola, vão para o trabalho, saem e vão estudar, voltam e vão repetir as mesmas ações da manhã. Fazem a janta, banham os filhos, botam-nos para dormir e que depois, quando já passou tempo demais, precisam ainda repetir a mesma cena.

  Hoje não desejo congratular as mulheres e moças e senhoras e idosas por terem nascido com o falso dom maternal, de gerar vidas, de levar tapas, cantadas, apertões, beliscadas, socos, pontapés, de receberem lisonjeadas palavras de amor, de lascívia e sexo explícito. Não farei menção ao (não) direito do aborto, à obrigação das saias e maquiagens e cabelos sedosos e esmaltes e lingeries vermelhas, pretas ou lilases.

  Não falarei de todas as lutas por espaço igual, direito igual, sonho igual. Do direito aos decotes e saias curtas num dia quente, sem que isso seja um convite ao sexo; do direito de não cruzar as pernas, sem que isso seja um convite ao sexo; do direito de andar sem sutiã, sem que isso seja um convite ao sexo; do direito ao próprio sexo, sem que isso seja um convite ao estupro.

  Não direi obrigado às menininhas, aquelas que querem um boneco, uma nave, usar cabelo curto; não querem se vestir de princesa, e não querem sonhar com um castelo e um príncipe galante e fabricado.
Não lembrarei das famosas frases sobre o lugar da mulher, o dever da mulher, o direito da mulher, o espaço da mulher, a vontade da mulher. Não pedirei desculpas à vocês por terem feito (no másculo teatro da vida), por todos esses anos, o papel de sexo frágil, assustada, dependente, carente, traidora, passiva, infiel, subalterna.

  Não, não, não.

  Não há desculpas nem celebração que cure o mal causado pelo homem, macho, viril e irracional às mulheres. Não há data nem apagador que oblitere todos esses séculos de perseguição, assassinato e depressão presenteados às mulheres.

  Não, não, não.

  Hoje não tem parabéns, hoje não tem flores nem vestidos, não tem sapatos, bolsas, maquiagens, nada. Hoje é mais um dia para celebrar a vergonha, o nojo, o asco muscular que cobre nossos ossos culpados. É mais um dia para nos despirmos dessa casaca dura, misógina e pétrea chamada machismo, é mais um dia para nos ajoelharmos e recebermos séculos de chibatas e açoites pelo mau domínio do poder a nós delegado pela força, não merecimento, não dádiva.

  Hoje é mais um dia, não apenas o dia, de dizer lute, seja, faça, relute, queira, ame, transe, pense, repense, reclame, refaça, duvide. Não há verbos feitos somente às mulheres, mas verbos. Conjugá-los vai além de um gênero. Não sei quantas mulheres padeceram enquanto escrevi isto, mas sei que morri, e morro, a cada uma dessas perdas humanas. Pois é isso o que somos, humanos.     

  Humanos com costelas, com desejos, com vidas e virtudes. Mas em virtude da vida que não desejaram, por terem vindo da bíblica costela, as mulheres padecem de nós. Se preciso parabenizar alguém no dia de hoje, esse alguém é o macho, pelo dom supremo da aniquilação. 

  Boa Batidas, ao som de Elza Soares



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