terça-feira, 28 de junho de 2016

Existe arte na despedida?

Faz anos que escuto as pessoas dizendo que sabemos quando iremos morrer, de uma forma ou de outra. Pode ser uma placa casual, uma etiqueta, uma ligação inesperada, feita ou recebida. Verdade é que o mundo está cheio de profetas, sensitivos de seus sentimentos e dos outros, só que ninguém os conhece, nem mesmo eles se conhecem.

Ao longo da história, muitas músicas foram escritas e, posteriormente, tachadas como epitáfios, despedidas, profecias e coisas desse gênero. E algumas delas realmente soam como tal.

Nyro e seu primeiro disco
Em 1967, então com 19 anos, Laura Nyro lançava seu primeiro disco More than a new Discovery. A essa época, a cantora já possuía certo renome como compositora, tendo vendido, dois anos antes, a sua And when I die - gravada no disco citado - por 5000US$ ao trio Peter, Paul and Mary.

Como dito, se as pessoas se despedem abruptamente quando sabem de sua morte, então Laura adiantou em anos o seu epitáfio. Em versos certeiros, a cantora dispara: “And when I die, and when I'm gone/ there'll be, one child born, in this world/ to carry on, to carry on”. A canção, apesar de seu tom carregado e alusivo à morte, fala mesmo é da aparente futilidade da vida, em como perdemos nosso tempo atrás de coisas vãs, mas no final nos despedimos, para que assim alguém possa chegar.

Laura morreu aos 49 anos, em 1997, em decorrência de um câncer, e com uma carreira enfestada de músicas instropectivas. And When I Die, depois de todos esses anos, continua sendo a grande despedida da cantora, apesar da música só ter explodido mesmo pela gravação do Blood, Sweat and Tears, também em 1967, tendo a cantora, à época, um relacionamento com o baixista, Jimmy Fielder.     
A capixaba Nara Leão nunca foi letrista, tendo raras incursões nesse meio, mas nem por isso deixa de entrar nessa discussão. Em 1989, aos 47 anos, a chamada musa da Bossa Nova morrera devido a um câncer (mais uma) que se agravara muito à época. No mesmo ano, em outubro, fora lançado, já postumamente, o disco My Foolish Heart. Nele, a cantora mais uma vez, assim como no anterior - Meus Anos Dourados - fez versões de uma série de músicas do cancioneiro norte americano dos anos 50, como Night and Day, But not for me e a faixa título: My foolish...

Nara, antes do adeus
Com a voz já debilitada pela doença, Nara gravou as músicas com enorme esforço. A última foi My Foolish Heart, com seus versos pontuais de despedida: “Não sei para onde vou/ Não sei se vou ou vou ficar/ Pensei: não quero mais pensar/ Cansei de esperar/ Agora nem sei mais o que querer/ E a noite não tarda a nascer/ Descansa, coração/ E bate em paz.” A letra, versão de Nelson Motta, que levou o nome de Descansa, Coração, foi aparentemente a última coisa gravada pela cantora.

Aqui, muito mais do que em Laura Nyro, temos a constatação do fim e sua inexorável força. Ao dizer isso, Nara estava atestando (inconscientemente?) a sua despedida.

Jones, o homem de carne, em sua última encenação
Um caso bem recente foi o de David Bowie e seu epitáfio em forma de clipe: “Look up here, I'm in heaven/ I've got scars that can't be seen/ I've got drama, can't be stolen/ Everybody knows me now.” O clipe de Lazarus, do disco Black Star, mostra um Bowie deitado numa cama, com os olhos vendados e uma aparência sôfrega. Ali, apesar de continuar a sua saga de atuar como a uma personagem, encontramos o David Jones de carne, osso e (pasmem) câncer; “Oh, I´ll be free, Just like that blue bird", canta um homem já cansado, que sai de sua vida fantasiosa para entrar no armário da morte, a escuridão do limbo desconhecido; “Ain't that just like me?”, diz, fechando o enigma de sua vida.


Aqui no Brasil, temos também o emblemático caso de Renato Russo e sua A Via Láctea, canção de despedida - difícil encontrar outra definição - assim como boa parte do disco A Tempestade, de 1996. Naquele momento, tudo já estava perdido, e a certeza da morte já era contundente, em versos como: “Queria ser como os outros/ E rir das desgraças da vida/ Ou fingir estar sempre bem/ Ver a leveza das coisas com humor/ Mas não me diga isso!”. Assim como Nara, Renato morrerá no mesmo ano de lançamento do disco, por complicações causadas pela AIDS, doença que havia contraído sete anos antes.

Para fechar, lembremos de Show Must Go On, do Queen e os boatos intermináveis em torno de sua gravação. Dizem que Freddie Mercury, já arrasado pela AIDS, chegou ao estúdio, escutou as bases de Brian May, deu uma enorme golada numa garrafa de Vodka e gravou a música, de uma só vez, num único take. Sem pausas nem erros. A canção fora composta pelo guitarrista como uma homenagem a Freddie, e mesmo assim com ressalvas por parte de May, que não tinha certeza se o vocalista conseguiria alcançar as notas altas as quais a música pedia. E a gravação está aí pra nos mostrar que sim. 

Bom, a lista de despedidas é longa, algumas expressas, outras veladas e mais um monte inventada por quem quer dar tal definição. Nesse pacote, podemos citar George Harrison com Stuck Inside a Cloud, Warren Zevon com Keep Me in Your Heart ou mesmo Johnny Cash e sua regravação de Hurt, do Nine Inch Nails.


Boas Batidas, enquanto existirem...    

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